Ao vivo a música é outra

Live

A difícil arte de transformar um concerto num disco.

Sabem aquela sensação de ir dos zero aos cem em menos de nada com que somos confrontados num grande concerto? Aqueles momentos de felicidade absoluta? A mistura entre cansaço e papo cheio no final da noite?

Um álbum ao vivo nunca conseguirá produzir efeitos semelhantes. E, devo dizê-lo, enquanto álbum é normalmente um produto inferior. Não foi feito para estar fechado num disco em estado puro; foi feito para conviver.

Haverá certamente exceções, mas é quase indiferente para este artigo. Um dos aspetos mais interessantes dos álbuns ao vivo é a abordagem dos artistas à sua própria música, tanto ao nível das canções como da obra no geral. Isso e a construção de um espetáculo como algo mais do que a transposição da música para um evento público, como algo único possível de captar em disco.

Olhemos para o aparato de Pulse, álbum ao vivo que encapsula a digressão deThe Division Bell, dos Pink Floyd, como exemplo claro, quase caricaturais deste último tipo de abordagem.

Mas, se me perguntarem, é em pormenores um tanto ou quanto mais discretos que se encontram as verdadeiras preciosidades. Na bateria tresloucada de Keith Moon ao longo de Live At Leeds, dos The Who. Nas histórias e nos falsos começos de Jeff Buckley na Legacy Edition de Live At Sin-é, EP editado originalmente em 1993 que se transformou em álbum duplo dez anos depois. Em “True Love Waits”, canção sem edição de estúdio dos Radiohead que encerra I Might Be Wrong: Live Recordings, de 2001.

Este último (bem como Pulse e uma parte significativa dos álbuns gravados ao vivo) contém gravações de vários concertos, ao contrário do mencionado álbum dos The Who, gravado na Universidade de Leeds a 14 de fevereiro de 1970 e considerado por uma quantidade razoável de críticos o melhor álbum ao vivo de sempre. Confesso que, no plano teórico, a última abordagem me parece bastante mais corajosa e apontada à grandeza. Também me parece mais difícil de fazer bem, dado o rol de fatores que afeta qualquer concerto – dos problemas técnicos à energia do público, entre muitos outros. Mas quem não arrisca não petisca.

O problema com os álbuns ao vivo é que, na maior parte das vezes, o petisco não é uma iguaria. Deem-me versões diferentes, novas canções e outras surpresas – aceito-as de bom grado. Mas a verdade é que, se pudesse escolher, é possível que optasse por ouvir aquelas versões diferentes, novas canções e outras surpresas gravadas em estúdio, em que o foco está totalmente no produto.

Podemos falar de como ao vivo as canções ganham novos contornos e os artistas simplesmente vão na onda. Não me faltam exemplos próximos do coração.

versão alternativa de “Terrible Love”, dos The National, foi uma espécie de single, teve direito a vídeo e está apenas num segundo disco da edição especial de High Violet. Mas antes houve esta, que é a que está no álbum. Não é uma terrible version, mas, depois de a banda ter começado a tocá-la ao vivo, a canção transformou-se.

O mesmo aconteceu com a fantástica “Beth/Rest”, de Bon Iver, que tem duas belas versões: a do álbum e a de um iTunes EP que a banda disponibilizou – como o próprio título dá a entender – em exclusivo no iTunes. As diferenças não são gigantes, mas não me tirem a versão do EP, por favor. É mais próxima da que a banda tocava ao vivo na digressão de Bon Iver, Bon Iver e, só pela parte final, já valia a pena.

Por fim, os meus Radiohead. Apesar de não ter ficado plenamente convencido com The King Of Limbs quando a banda o lançou em 2011, “Bloom” sempre foi um bom tema de abertura. Mas não soaria bem ao vivo. Isto sim:

Percebem a ideia. Nestes casos, tenho a sorte de ter versões limpas (sem público e com qualidade de estúdio) de canções que adoro. Mas soam melhor do que ao vivo? Deixem-me responder com uma referência bem obscura e relativamente parva, citando o Ulisses de Ai os Homens: não.

Uma coisa é certa: por mais que piquemos aqui e ali, os álbuns ao vivo só fazem sentido como um todo, até porque a tentativa (condenada ao fracasso) de replicar o espírito da música ao vivo assim o dita. O sucesso, esse, depende de muitas coisas. Alguém acredita que At Folsom Prison, de Johnny Cash, teria sido tão bom se não tivesse sido gravado numa prisão? E teria The Long Goodbye: LCD Soundsystem Live At Madison Square Graden a mesma força se não retratasse a despedida (claramente revogável) da banda de James Murphy?

Não vale a pena achar que ouvir um álbum destes é quase como lá ter estado. Não é, nunca será. Pode até ser um símbolo ou uma espécie de substituto menor, mas ao vivo a música é outra.