A mononucleose, a cabana na floresta e a maravilhosa música de um álbum perfeito.

É difícil recuar dez anos e imaginar-me na situação em que estava. Trabalhava há menos de um ano numa agência de comunicação, a minha primeira experiência profissional a sério, e as memórias da faculdade estavam ainda muito presentes. Vivia ainda com os meus pais e a minha avó, em Lisboa. A minha avó ainda era viva. Já eu tinha, ao mesmo tempo, o rei na barriga e todas as inseguranças do mundo. Nunca fui especialmente sonhador ou otimista, mas tinha os olhos postos no futuro e era um tipo feliz.

A música era o meu combustível. Começaria a escrever por aqui uns meses depois,  mas já então escrevia noutras paragens. For Emma, Forever Ago chegaria aos meus ouvidos apenas mais perto do final do ano. Agora é bastante óbvio que foi das coisas mais importantes que aconteceu à minha relação com a música nos últimos dez anos, se não a mais importante, mas na altura… quem diria?

Sempre fui de mergulhar de cabeça na música que me diz alguma coisa. As minhas centenas de discos dos Radiohead e as dezenas de artigos que escrevi sobre Mark Kozelek ilustram bem esta minha veia. Mas começa sempre devagarinho e o intervalo entre a primeira audição e a segunda chega a ser de meses ou anos, portanto… demoro o meu tempo.

O tal canal

Bon Iver não foi exceção. As primeiras vezes, ainda antes de escutar o álbum, foram focadas numa música e foram culpa dos The National, que naqueles tempos punham a música a tocar como introdução nos seus concertos. Ouvi-a na Aula Magna em maio e ouvi-a no Alive em julho, tudo isto em 2008. Era gira, mas na altura pouco mais tinha a dizer sobre ela.

Mais tarde, um amigo veio falar comigo – provavelmente no Windows Messenger ou numa dessas coisas extremamente antiquadas – e chamou-me a atenção para uma música de Bon Iver. “Skinny Love”, provavelmente. Como já tinha ouvido falar dele, tentei encontrar a música que conhecia. E encontrei-a. Era “Flume”.

Em 2008, o MySpace ainda ocupava um espaço importante no mundo da música. O YouTube, por sua vez, existia há três anos, mas já mostrava sinais de que, enquanto plataforma, tinha muito a dar a músicos e a fãs, sobretudo graças ao pioneirismo de algumas estações de rádio norte-americanas, que enchiam os seus canais de vídeos de sessões ao vivo. Uma delas, a KCMP – ou 89.3 The Current –, estação da rádio pública do Minnesota dedicada à música alternativa, tinha, já na altura, muitos bons exemplos no YouTube.

Foi por lá que me cruzei com “Flume”, uma das canções escolhidas para uma sessão publicada no site da estação e no YouTube em meados de janeiro de 2008. Dessa sessão faziam parte ainda “Lump Sum” e “For Emma”, bem como a obrigatória entrevista.

E aí sim, a música pegou. Ainda eu não tinha esperança de vir a perceber o que raio queria ele dizer com “Only love is all maroon”, já “Flume” me tinha feito querer ouvir For Emma, Forever Ago. E ainda eu tratava Justin Vernon por “o Bon Iver”, já o álbum estava no meu iTunes. A partir daqui, a coisa fica um bocado turva, porque a música se mistura com a lenda.

O amor e uma cabana

Em 2006, as coisas não estavam a correr muito bem para Justin Vernon em Raleigh, na Carolina do Norte. Uma pneumonia e sobretudo uma mononucleose, também conhecida como a doença do beijo por ser transmissível através da saliva, tinham dado cabo dele a nível físico.

Pela mesma altura, punha fim aos DeYarmond Edison, banda com que tinha editado dois álbuns, e à relação com Christy Smith, que continuou, apesar de tudo, a ser sua companheira de quarto durante mais algum tempo. “Skinny Love” surgiu, como outras canções, com o fim da relação e o músico mostrou-a à ex-namorada enquanto ainda viviam juntos. Desconfortável.

Parece que, em cima disto, Vernon, na altura com 25 anos, juntou duas coisas que não combinam lá muito bem: a falta de dinheiro e o vício do jogo. Se fosse possível acumular mais problemas para compor a sua crise de um quarto de século, ele certamente não teria dito que não, mas foi nesta fase, pouco tempo antes do início do inverno, que decidiu rumar a norte.

A viagem de 18 horas entre a Carolina do Norte e o Wisconsin acabou em Eau Claire, onde nasceu e cresceu. Ainda assim, após algum tempo em casa dos pais, Justin Vernon percebeu que precisava de se isolar e mudou-se para uma cabana no meio da floresta perto de Medford, a uma hora da sua cidade natal.

Construída pelo pai umas décadas antes, a cabana de caça da família não era propriamente acolhedora, sobretudo se tivermos em conta que se aproximava o inverno e que, para aqueles lados, as temperaturas entre dezembro e fevereiro não costumam atingir sequer terrenos positivos. Mas se as condições não eram ideais para mais nada, pelo menos adequavam-se perfeitamente ao nascimento de uma lenda.

bon-iver-200801

A lenda ignora as primeiras semanas que Justin Vernon passou sem fazer nada e a beber cerveja, tal como ignora que o pai passava lá a cada dez dias para lhe levar alguma comida (e cerveja). Ainda assim, o músico dependia sobretudo de si para sobreviver, tendo caçado dois veados durante os três meses em que lá viveu.

A lenda ignora também que a relação que acabou em Raleigh não foi com a Emma que empresta o nome ao título do álbum, mas com Christy Smith, que até cantou e tocou bateria em “Flume”. Emma – nome do meio de Sara Jensen – tinha sido namorada de Justin Vernon uns anos antes, durante os tempos de faculdade, e eles continuavam amigos.

Mais recentemente, no ensaio publicado na edição comemorativa dos dez anos de For Emma, Forever Ago, Trever Hagen fala sobre Emma, com quem também namorou, ainda que uns anos antes, como a musa de ambos. Mas o amigo e colaborador de Justin Vernon também diz que muitas das palavras no álbum são cantadas e dirigidas por outras pessoas ao músico, algo que pode, por exemplo, transformar o acusador em acusado e uma vítima num agressor.

Com ou sem recuperação da mononucleose, com ou sem desgosto de amor, o álbum foi gravado quase totalmente por Justin Vernon entre novembro e janeiro na cabana de caça e a lenda nasceu.

Dez anos de música no sítio certo, à hora certa

Não me lembro da minha reação quando ouvi o álbum pela primeira vez. Não me lembro se “re: Stacks” me espetou a seta no coração à primeira ou se demorou a encontrar o sítio. Tenho a certeza de que seria muito melhor se me lembrasse, mas nem todos podemos contribuir para a lenda da mesma forma. Orientemo-nos, então, para o resultado: dez anos depois, não me faltam palavras para escrever sobre Bon Iver e sobre For Emma, Forever Ago.

Sei que “Skinny Love” foi a perdição de quase toda a gente que se perdeu por Bon Iver, mas eu sempre me encontrei mais na dor crua de “The Wolves (Act I and II)”, na energia contida da dupla “Creature Fear”/”Team” e na placidez de “Blindsided”. E “Flume” tinha – e terá sempre – guardado um lugar especial no meu coração, mas “re: Stacks” é a minha casa nos últimos dez anos. Para Justin Vernon pode ser uma música sobre o seu vício do jogo; para mim será sempre sobre a bagagem que carregamos.

É, também, um final de viagem perfeito para quem se aventura por For Emma, Forever Ago. Porque a bagagem de que “re: Stacks” se livra no final tem inscritos os nomes dos oito temas anteriores. A dor, o medo, o desgosto, a incerteza e a resignação que parecem marcar as primeiras oito músicas passam pelo tema que encerra o álbum para serem devidamente processados, encaixotados e guardados num sítio só deles. Não deixam de existir, mas acabam num sótão, num museu ou noutro local onde fiquem exatamente como estavam quando lá chegaram. For Emma, Forever Ago é uma espécie de Polaroid que captou todos os objetos importantes para aquela pessoa naquele momento. É um álbum de amor no sentido romântico do termo, mas também num âmbito um pouco mais lato: o daquele sentimento difícil de descrever que pontua as nossas relações, os nossos comportamentos e a nossa forma de ver o mundo. For Emma, Forever Ago é sobre o sentimento que tudo muda, mas também sobre as mudanças que ele opera. Por isso soa tão agridoce, acho.

For Emma, Forever Ago sabe bem porque a catarse sabe bem, mas também porque a música soa pura e sincera, não pelo que a lenda montou, mas porque veio de um sítio genuíno em que a crise pessoal e o talento de Justin Vernon se cruzaram.

Dez anos depois, é relativamente óbvio que a pureza da música de Bon Iver justifica a qualidade do álbum, mas também a sua longevidade. No entanto, a universalidade do tema e das experiências que moldaram For Emma, Forever Ago também ajudou e ajuda a manter esta espécie de ferida aberta à disposição de quem precise dela.

Mesmo que não percebamos do que raio está Justin Vernon a falar quando fala de amor e da vida, sabemos que é disso que está a falar e, se não for mais nada, é pelo menos uma maravilhosa companhia. Mas eu acho que é mais do que isso: é um exemplo do que a música pode fazer por nós, no sítio certo e à hora certa. E, nos últimos dez anos, For Emma, Forever Ago tem acertado sempre.