An Overview On Phenomenal Nature encontrou-me e não me quer deixar ir.

Confesso que, quando vejo um álbum de determinado género com uma boa crítica no Pitchfork, ainda me obrigo a ouvi-lo. É um hábito antigo que nem sempre me traz felicidade, mas os resultados positivos acontecem com frequência suficiente para que se justifique a deferência.

Foi assim que Cassandra Jenkins me chegou aos ouvidos pela primeira vez. Não a conhecia — não tinha sequer ouvido falar dela até 2021. Então, como tinha de começar por algum lado, decidi começar por “Michelangelo”, tema de abertura de An Overview On Phenomenal Nature, o álbum que ela tinha acabado de lançar. A canção tinha pinta. Mas nada podia preparar-me para o que aí vinha.

Lost at last

Seguiu-se uma viagem curta, de 30 minutos, mas estranhamente emocionante e conturbada. Senti-me esquisito. Se estivesse num filme de ficção científica, estou certo de que um espelho qualquer me faria ver que tinham passado anos.

Não há uma canção que eu dispensasse de An Overview On Phenomenal Nature, um álbum de uma beleza tão penetrante que quase magoa.

Há um par de canções que me toca de forma especial: “Ambiguous Norway” e “Hailey”. A primeira é fruto do luto de Cassandra Jenkins pela morte de David Berman (o criador de Silver Jews e Purple Mountains), com quem se preparava para ir em digressão na altura. A segunda é, segundo a própria, uma canção de amor platónico dedicada à jornalista-modelo-atriz-realizadora Hailey Gates. São ambas lindíssimas e encaixam na perfeição, mas… não deviam. E isso só as torna mais cativantes.

A sensação é semelhante quando tento explicar o género de música/feitiçaria que para aqui vai. É que “Michelangelo” parece bem sentadinha no meio daquela mistura folk/rock/country a que chamam americana, mas o resto do álbum vai da folk bem arranjada de “New Bikini” à música ambiente de “The Ramble”, fruto da colaboração à distância com vários músicos e de passeios pelo Central Park para observar aves quando Nova Iorque enfrentava a pior fase da pandemia. Tudo isto com muito… saxofone.

One, two, three

Isto pode bem ser um bom pedaço de projeção, mas a pandemia parece ser um aspeto central de An Overview On Phenomenal Nature. Não nos temas, mas nos sons. Há algo de meditativo nestas canções, que funcionam como uma receita para a tranquilidade.

A canção que melhor encapsula esta receita é, claro, “Hard Drive”. Digo “claro” porque é graças a esta canção que este texto existe. Foi esta a canção a que o Pitchfork colou o seu selo de “Best New Music” (viria a fazer o mesmo ao álbum). Foi esta a canção que me deixou fodido da cabeça. E foi a ela que quis voltar imediatamente.

O entrelaçado de spoken word e uma certa cadência pós-rock faz com que “Hard Drive” seja, ao mesmo tempo, a canção mais perturbadora de An Overview On Phenomenal Nature e a melhor. É íntima, mas de todos. Pode puxar a lágrima ou um sorriso largo. Tanto parece música de viagem como coisa para ouvir no escuro. Estranha-se, mas depois entranha-se.

A única coisa que não vejo a acontecer-lhe é ser recebida com indiferença. É o momento mais bonito de um disco que é bonito de uma ponta à outra. Uma obra-prima dentro de outra obra-prima.

Cheio de um certo je ne sais quoi nova-iorquino, cheio de pormenores subtis, cheio de arte e cheio de coração: An Overview On Phenomenal Nature, de Cassandra Jenkins, tem lugar garantido (e merecido) nas listas de melhores do ano.