Mas alguém no seu perfeito juízo faria o que Clairo fez com Sling?

Clairo é estupidamente talentosa. E, se já o podia dizer a propósito de Immunity, o álbum de estreia editado em 2019, agora até parece um pouco desnecessário. “É claro que é talentosa, Filipe. E então?”

É que não estava à espera de Sling. De todo. Tinha ouvido “Blouse” ainda antes do lançamento do álbum e era bonitinha, mas bem diferente. Além disso, tinha lido qualquer coisa sobre Sling ser um álbum sobre maternidade por causa de ela agora ter, bem, uma cadela, o que me fez pensar duas coisas. A saber:

  • Ó mulher, valha-me deus;
  • O álbum vai ser calminho.

E calminho é o que é. Mas também é muito mais do que isso.

Um álbum coeso

Sling tem algo de clássico, algo de analógico. Não sei se apesar de ou se exatamente por causa disto, vejo o álbum como um empreendimento bastante ambicioso. 

Quase todas as canções apresentam camadas de vozes e instrumentos e a sonoridade do álbum remete, no geral, para os anos 70. Pianos elétricos, vários tipos de sintetizadores e harmonias vocais que ocupam o espaço quando, aqui e ali, a instrumentação se torna esparsa ajudam a fazer de Sling um álbum muito coeso, muito completo, muito… álbum. O aparentemente omnipresente produtor Jack Antonoff pode ter ajudado um bocadinho.

Depois, há um pormenor que me apraz especialmente: as vozes dobradas e as melodias evocam Elliott Smith repetidamente ao longo de Sling, o que é sempre arriscado, mas, neste caso, corre muito bem. E, apesar de não ser o álbum mais imediato do mundo — não tem uma “Bags” a mandar tudo abaixo —, recompensa o tempo que lhe é dedicado.

Um animal diferente

E ela já escrevia bem, pelo que o que vou dizer a seguir não é propriamente uma notícia de última hora, mas as letras são densas e cheias de ideias interessantes e nota-se, de facto, o tema da família e da maternidade ao longo do álbum. Em Sling, a voz de Clairo continua a soar modesta e interessante. E as canções brilham e o álbum acaba por se aferrar aos nossos ouvidos. O que pode uma pessoa querer mais de um álbum?

Façam o que quiserem: ouçam o álbum todo ordenadinho do início ao fim ou escolham uma música qualquer ao acaso com esses vossos dedos gordos. Vai correr tudo bem. “Bambi”, “Amoeba”, “Zinnias”, “Harbor”, “Just For Today”, “Reaper” e até a instrumental “Joanie”, além da já referida “Blouse” — são todas canções maravilhosas. E as que eu não disse também não envergonham ninguém.

Depois de um primeiro álbum pop muito bem conseguido, alguém no seu perfeito juízo faria o que Clairo fez com Sling? Talvez não, talvez não. Mas ainda bem que ela fez isto. Sling é um animal diferente, sim, mas será, certamente, um dos meus álbuns do ano.